A história de mais um cara comum

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Verão, amor bobo, inconsequente. Ele tinha 24 e ela 16. O coração disparado, balançando em corda bamba. Alguns anos de convivência, harmonia e entusiasmo. Casaram-se no dia 6 de maio, ao som de “Roberto Carlos”. A primeira visita da cegonha não tardou, e decidiram mudar-se para uma casa mais ampla, bem decorada com peças caras. O menino iria se chamar Gabriel – enviado de Deus. Desde criança mostrou temperamento forte, decisivo, um ar autoritário de quem sabe o que quer. Pouco disciplinado, era extremamente mimado e irresponsável. Os pais viajavam no fim de semana, a casa tornava-se uma desordem; amigos embriagados, havia mais álcool que churrasco. Na escola, um comportamento irregular, desrespeitava professores para impressionar. Depois de um tempo, tédio tomou conta de si, pensou em sair de casa, ir mundo a fora curtir. Os pais foram contra, alegaram ingratidão, rancor, despeito. O menino, revoltado, trancou-se no quarto e pôs-se a refletir. Daria um jeito de viver uma nova realidade, conseguiria quebrar os laços que o mantinham ali. A festa do Manteiga seria na sexta, uma oportunidade para se divertir. As gatas estariam lá, haveria biritinha pra descontrair. Umas idéias na cabeça, sabia como mentir. “Pô pai, tem simulado amanhã, preciso de ajuda aí. A Ritinha é gente boa, vai repassar as paradas, ajuda a força aí”. O pai finge que não vê, a mãe precisa se tratar, tantas minhocas na cabeça, difícil acreditar. A música era pesada, havia fumaça no ar, dançavam sem se preocupar. Algumas subiam a saia, desciam do salto, queriam experimentar. Um cara, tal de Piolho, oferecia o que Gabriel ainda não conhecia. “Prova aí, cara, pra você faço por uma mixaria”. As cores transbordavam sensações, queria ficar longe do chão. Parecia não cansar, nada de medo, desgosto, desespero. Nunca se sentira tão feliz. A mãe não percebia, mas o pai estranhava sua boa educação. Tentou se aproximar, averiguar, queria ajudar. O enviado de Deus jurou arrependimento, disse que agora iria se redimir. Iria se reajustar, claro. Aprendeu a fumar, por influência dos amigos, começou a roubar. A família endinheirada não poderia suspeitar, por seus próprios meios iria se arranjar. Teria que se virar, comprar o pó, o preço estava no gogó. Piolho agora estava preso, na época da festa já era suspeito. A polícia fechou o circo, levou o garoto para um abrigo. Gabriel soube que a droga ainda rolava por lá, o cara nunca iria se curar. Provou um pouco mais, abusou demais. O surto foi nervoso, pobre Piolho, seu final feliz foi pro esgoto. Gabriel não se importava, nada mais parecia o interessar. Vivia ligadão, pulsando forte o coração. Em um desses fins de semana, em que os pais estavam fora, pegou o carro escondido, entrou na contra mão. Lembra-se de pouca coisa, sofreu uma contusão. O médico diagnosticou o uso das drogas, o pai fez a ligação. A mãe só conseguia chorar, pensava no que os vizinhos iriam falar. Contra sua vontade, foi levado a reabilitação. Passaram-se três anos de loucura e solidão. Queria voltar a estudar, poder trabalhar, reconstituir a própria vida. Agora não possuía a beleza de antes, estava magro, pálido, desgastado. Sentia na pele o preconceito e a repulsão, tratado pior que um cão. A mãe o desprezava, sonhara um futuro diferente para o tal enviado de Deus. O pai estava ali, lhe estendia a mão, o filho almejava sua aprovação. Mudou-se de cidade, era o melhor para recomeçar. Soube de seus ex-parceiros. Alguns estavam presos, outros sob lápides, outros tantos ainda resistiam ao subúrbio brasileiro. Gabriel retornou a escola, para conseguir respeito, iria se respeitar. Conheceu Joana, nem sabia mais o que fazer ou pensar. Sem contar as experiências vividas, agora, queriam o mesmo para as suas vidas. Como uma forma de se ajudar, decidiu o seu destino ao dela juntar. Estava apaixonado, as coisas iriam mesmo melhorar. Passaram juntos no vestibular, queriam constituir família, pensavam em casar. Ela sonhava em ter filhos, ele não os queria. Lembrava-se bem de sua adolescência, de sua insolência, da falta de decência. Não queria por mais um ser a sofrer por aí, vivendo sem controle de si. A discussão virou uma confusão, ele, enfim, percebeu que não merecia seu coração. Ela iria achar um cara mais ajuizado, sem manchas no passado. Resolveu se mandar, seria um lobo solitário, durante a noite se punha a uivar. Pedia ajuda as estrelas, queria uma força, uma certeza. Torrou o salário com cerveja e orgia, voltou a desvincular a própria vida. As drogas o chamavam de volta, seduziam. Dormia nas ruas, lutava por comida. Para quem estava destinado a uma vida de gala e brilhantina, se auto-destruía. Voltou a sua cidade, com o pouco dinheiro que ainda possuía. Sua mãe o recebeu com desdém, culpava-o pela morte do marido. Ataque cardíaco, que o desgosto produzira. Nunca sofrera tanto na vida, nem em seus momentos de depressão. Seu pai havia ido para o céu, morreu sem lhe fornecer o perdão. Queria juntar-se a ele, mesmo consciente de que iriam para lugares diferentes. De qualquer forma, o inferno não poderia ser muito diferente do que vivia. Enquanto caminhava pela multidão, tentando esconder-se na escuridão, ouviu um sermão. Alguém contava casos de amor e gratidão, felicidade e satisfação. Dizia que o seu Pai era o único que poderia fornecer a salvação. Seu peito foi invadido por uma estranha ilusão, a de que poderia sim, ter realização. Imaginou como seria a vida, quis ter de volta Joana, sua boa companhia. As dores todas, já conhecia, queria experimentar a alegria. Com algumas contribuições, pôde pagar a condução. Encontrou Joana ainda sofrida por seu abandono, lhe ofereceu seu obro, abriu o coração. Contou tudo o que havia vivido, sentido e sofrido, mas que queria mudar, queria dar a volta por cima. O salário era pequeno, a casa menor ainda. Mas naquele lar, reinava uma estranha harmonia. Gabriel – o enviado de Deus, conheceu o poder do que seu nome remetia. A cegonha não tardou a ir visitar aquela moradia, e a história enfim se repetia. O final, ninguém conhecia.

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