Quando a morte conta uma história (1)

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

(O acidente)

A morte existe, não como a retratam, mas ela existe. Ela decide a forma como irá levá-lo, o quanto você deve sofrer e até mesmo quando você deve ir. Torça para que ela simpatize com você. Fria, não costuma se sensibilizar, bem, não costumava. Conheça agora a história da pequena Emmily, narrada pela própria morte. O dia em que a morte reparou pela primeira vez em uma de suas vítimas.

Acreditava ser um dia de trabalho qualquer, já estava decidido que o trem que cruza a Quinta Avenida com a Flexeiras iria colidir em um carro e uma criança de 6 anos iria morrer. Seria apenas mais um dia tedioso de trabalho, afinal, todas as pessoas falam de mim, temem a mim, mas nenhuma se importa realmente comigo. Quando alguém é levado, sentem pela pessoa, pela família, me condenam, mas nunca nenhum deles parou para pensar que eu esteja apenas cumprindo com minha obrigação. Nesse dia, no entanto, pela primeira vez alguém reparou em mim, uma menininha de 12 anos.
Me atrasei um pouco, mais alguns instantes e o carro conseguiria atravessar a linha do trem. No banco da frente, seguindo a risca o planejado, o pai falava ao celular. No banco traseiro, a irmã do menino que iria morrer, me olhava com uma expressão de espanto. Ela parecia pressentir o que iria acontecer, o coração palpitava, estava pálida, sentia calafrios. O irmão dormia deitado em seu colo, ela o abraçou com tanta força que chegou a avermelhar o braço do pequeno. Não permiti que ele despertasse. Ouviu o barulho do trem, uma forte luz no rosto, daí não viu mais nada.
Permiti que a criança ficasse desperta por cerca de cinco minutos. A menina tentava me convencer a deixá-lo ficar. Queria gritar, chorar, mas não se mexia. Estava em pânico. Naquele instante, percebi que ela parecia mais comigo do que eu poderia imaginar. Os grilos já começavam a cantar, as árvores aos poucos ficavam negras, os ventos eram intensos. Um guarda chegou ao local, procurava um responsável pelo acidente, como um culpado? O que, afinal, ele poderia fazer, me prender?
Decidi observar os passos daquela menina, sua curiosidade, pertinência, o súbito interesse por minha existência lhe condenou a uma vida guiada por mim. Daquele momento em diante, eu iria acompanhar cada perda e ganho daquela menina, até decidir em qual momento a levaria comigo.
O tempo foi passando, as coisas foram seguindo o seu rumo natural, as folhas secas aos poucos se renovavam. A menina foi crescendo, se adaptando a minha presença. Comecei a sentir um leve carinho por aquela que agora era uma mulher. Até que, recebi ordens superiores. Havia chegado o momento de levar Emmily. Quando a morte ocorre a uma pessoa "bem vivida", já em sua fase idosa ou até mesmo adulta, as pessoas tendem a "aceitar" melhor. Mas quando ela chega na ânsia de sua juventude, deixando sonhos, planos ao meio, cadernos em branco, roupas recém usadas no armário e um monte de disposição; o sofrimento e a recusa é bem maior. Chega a ser cômico, mas eu não poderia aceitar que Emmily passasse por isso. Eu que havia provocado tal sofrimento a tantos outros, não aceitava que uma jovem tão saudável fosse arrancada de sua realidade contente, apenas porque sua linha da vida é um pouco mais curta que a dos demais.
A morte não pode nutrir sentimentos por ninguém. É essa a lei da vida. É necessária a ida de alguns para a então chegada de outros. Seria em uma quarta-feira chuvosa, ela estaria de branco, com o cabelo preso. O dia do crime chegou...

Quando a morte conta uma história, você precisa parar para ouvir.

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